Por
Jânsen
Leiros Jr.
"O Livro dos Salmos, visto meramente como uma composição
poética, tem sido objeto de nossa mais viva atenção. Homens dos mais refinados
e apurados pendores têm com frequência se dedicado ao estudo dele, partindo das
belezas poéticas que lhe são abundantes, e têm admitido, neste respeito, a
superioridade das alegações do mesmo. O maior de nossos poetas ingleses assim se expressa
acerca desses cânticos sacros: “Não só em seu divino argumento, mas na própria
arte crítica da composição, eles podem facilmente ser realçados acima de todos
os gêneros de poesia lírica como sendo algo incomparável.” Outro excelente
erudito, discorrendo
sobre o mesmo tema, diz: “Em sua fluência e inspiração líricas, em sua força e
majestade esmagadoras, as quais parecem ainda ecoar os terríveis sons uma vez
ouvidos sob as trovejantes nuvens do Sinai, a poesia das antigas e sacras
Escrituras é a mais esplêndida que já incandesceu o coração humano.”
O Livro de Salmos; João Calvino
– Introdução pag. 13
Edições Paracletos
Poucos temas têm chamado mais atenção
de estudiosos, teólogos e líderes religiosos da atualidade, do que adoração e
louvor. Suas formas, conteúdos, origens, significados e pertinências, têm sido objeto
de amplo e intenso debate, seja através de publicações, palestras, sermões ou
mesmo seminários mundo afora. No Brasil, com o crescimento das igrejas onde o
louvor ocupa um papel de destaque na atração e permanência de fiéis, o assunto é
ainda mais relevante, promovendo discussões acaloradas e argumentações
divergentes, que apontam para além das diferenças das formas, chegando mesmo à
reflexão quanto a legitimidade de modelos, estilos e conteúdos teológicos.
Algumas questões têm contribuído para
o acirramento das discussões, e me parece necessário pontuá-las, para que a
importância do tema não seja banalizado como mera celeuma sobre qual a cor de
tinta é ideal para a fachada do muro da igreja. Assim, podemos destacar:
Diversidade
de Práticas
O crescimento e a diversificação das
igrejas e tradições religiosas, surgiram diferentes abordagens e práticas de
adoração e louvor. Isso provocou debates sobre qual é a forma
"correta" ou mais apropriada de adorar a Deus, levando em
consideração aspectos como estilo musical, liturgia, forma de culto e questões
afins.
Mudanças
Culturais
A sociedade passou por mudanças
culturais significativas, afetando também as expressões de adoração e louvor
nas comunidades religiosas. Questões relacionadas à contextualização,
relevância cultural e impacto da música e da arte na adoração têm sido
amplamente discutidas.
Teologia
da Adoração
As discussões sobre adoração muitas
vezes estão ligadas a questões teológicas mais amplas, como a natureza de Deus,
o propósito da adoração, e a relação entre o sagrado e o secular. Com isso as
atenções se voltam para a importância da adoração na vida espiritual, sua
relação com outras práticas religiosas e seu papel na formação da identidade
religiosa.
Tecnologia
e Mídia
O avanço da tecnologia e o uso de
mídias sociais têm impactado a forma como a adoração e o louvor são realizados
e experimentados. Questões relacionadas à utilização de instrumentos musicais
modernos, projeção de letras de músicas, transmissão ao vivo de cultos e outras
práticas, têm gerado questionamentos sobre como conciliar tradição e inovação
na adoração.
Conflitos
Doutrinários
Por fim, em algumas comunidades
religiosas, especialmente aquelas com diferentes correntes teológicas, têm
surgido conflitos doutrinários relacionados à adoração e ao louvor. Questões
como a ênfase na experiência emocional versus a profundidade teológica, a
primazia da música contemporânea versus os hinos tradicionais, e a
interpretação das Escrituras relacionadas à adoração, têm sido pontos de permanente
discordância.
Resumindo, mas longe de minimizar a
tensão sobre o assunto, o debate sobre adoração e louvor reflete a complexidade
e diversidade da experiência religiosa contemporânea, bem como as mudanças
culturais, tecnológicas e teológicas que caracterizam a sociedade moderna.
UTILIZANDO SALMOS COMO PILAR
No embalo do processo, portanto, considerei
oportuno desenvolver com minhas turmas, uma série de estudos sobre o tema,
propondo uma abordagem o mais afastada possível dos embates, porém sem jamais
deixar de nos posicionarmos, quando necessário, sobre quaisquer questões
pertinentes ao tema tão controverso.
E para que nossos estudos utilizassem
um caminho que entendo menos acidentado e livre de armadilhas como achismos e preconceitos, decidimos
refletir sobre Adoração e Louvor, baseando nossas compreensões no que o Livro
de Salmos nos sugere ser a base de uma adoração legítima e aceitável, e um
louvor pra lá de inevitável, diante do espanto que a generosa revelação de Deus
provoca no coração adorador, nas mais diferentes circunstâncias e tempos da
vida.
O Livro de Salmos, um dos mais lidos
de todo o conjunto bíblico, e conhecido por sua profusão em manifestações da
alma humana, é atribuído a diversos autores, como Davi, Asafe, os filhos de
Corá e outros. Esses salmos foram compostos em diferentes contextos históricos
e refletem uma variedade de emoções, como alegria, gratidão, tristeza,
arrependimento, confiança e esperança. A diversidade de temas e sentimentos
encontrados nesse livro, torna-o atraente, acessível e sobretudo relevante,
para pessoas de todas as épocas e culturas, uma vez que aborda de maneira
franca as experiências universais mais profundas e reais da humanidade.
Além de amplamente utilizado na
adoração coletiva, os Salmos também desempenham papel primordial na inspiração à
espiritualidade individual dos crentes. Quer servindo como um guia para a
oração pessoal, quer de provocação à meditação, o texto de Salmos incentiva os
indivíduos a se voltarem para Deus em todos os aspectos de suas vidas. Com
palavras de encorajamento para enfrentar os desafios da vida, consolo em tempos
de sofrimento e esperança para o futuro, os salmos oferecem amplitude de
realidades vivenciadas com Deus, capazes de acolher a todos, em quaisquer circunstâncias.
Além de extremamente importante na
tradição religiosa, os Salmos também têm sido objeto de estudo e reflexão por
parte de teólogos, acadêmicos e líderes espirituais ao longo dos séculos. Sua
riqueza poética, profundidade espiritual e relevância universal, somadas às profundas
verdades teológicas sobre a natureza de Deus, a condição humana e a relação
entre ambos, seguem intrigando e desafiando estudiosos da Bíblia até hoje.
Particularmente, penso que o traço de
profunda sinceridade dos salmistas explicitadas em suas declarações sem
qualquer pudor ou reservas, tornam seus textos empáticos e amplamente
acolhedores aos mais diversos leitores mundo afora. Longe de serem apenas registros
de formas e ritos de culto e louvor, os salmos apresentam corações rasgados, dispostos
e disponíveis, entregues, espantados, devotados e rendidos, diante da
confrontação de suas miserabilidades pessoais, com a majestade, santidade, misericórdia
e amor de Deus, o que, em última análise, ajuda a criar profunda conexão
emocional entre criatura e criador.
DIVERSOS ESTILOS POÉTICOS
Outro aspecto muito presente no livro
de Salmos, que certamente contribui para seu conteúdo atraente, extremamente popular
e encantador, é a diversidade de estilos literários e arquitetura poética, com
que aborda variadas verdades intrínsecas ao ser humano e sua carência por Deus,
bem como os atributos Divinos revelados na relação com sua criação. Como
estilos literários predominantes nos Salmos podemos citar:
Hinos de Louvor e Adoração
Muitos salmos são hinos que exaltam e
glorificam a Deus, expressando gratidão, louvor e adoração por Suas obras e
atributos. Eles geralmente apresentam uma estrutura lírica e repetitiva, com
refrões e versos que destacam os atributos e feitos de Deus. Um exemplo
clássico desse estilo é o Salmo 100, que diz: "Celebrai com júbilo ao
Senhor, todas as terras". Também conhecido como "Salmo da
gratidão", é um dos textos mais conhecidos e amados da Bíblia. Ele é
breve, mas poderosamente inspirador em sua mensagem de adoração e louvor a Deus.
Lamentações e Súplicas
Outros salmos são expressões de
lamentação, onde os salmistas clamam a Deus em tempos de aflição, sofrimento ou
perseguição. Esses salmos frequentemente apresentam uma estrutura de
lamentação, na qual o salmista clama a Deus por ajuda e conforto. Um exemplo bem
conhecido é o Salmo 22, onde o salmista clama: "Deus meu, Deus meu, por
que me desamparaste? Por que se acham longe de minha salvação as palavras do
meu bramido?". Este salmo, inclusive, é repetido por Jesus na cruz, nos
instantes que antecedem a sua morte.
Salmos de Ação de Graças
Há salmos que expressam gratidão,
louvor e reconhecimento a Deus por Suas bênçãos, bondade e fidelidade
demonstradas na vida do salmista ou do povo de Israel. Esses salmos geralmente
seguem um padrão comum, onde o autor relata uma experiência de livramento,
provisão ou intervenção divina. O Salmo 103 é um exemplo notável desse estilo,
onde o salmista proclama: "Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e tudo o que
há em mim bendiga o seu santo nome".
Salmos de Confiança e Esperança
Também existem salmos que enfatizam a
confiança do salmista na fidelidade e proteção de Deus, mesmo em meio às
dificuldades. Eles expressam fé na fidelidade de Deus em cumprir Suas promessas
e na certeza da Sua intervenção salvadora. O Salmo 23 é um exemplo emblemático
desse estilo, onde o salmista declara: "O Senhor é o meu pastor; nada me
faltará".
Salmos de Sabedoria e Ensino
Alguns Salmos fornecem instruções
práticas para viver uma vida de retidão e sabedoria diante de Deus. Eles
oferecem conselhos práticos para uma vida piedosa e justa diante de Deus e dos
homens. Um exemplo é o Salmo 1, que contrasta o caminho do justo com o do
ímpio, declarando: "Bem-aventurado o homem que não anda segundo o conselho
dos ímpios".
O CARÁTER ÉTICO DOS SALMOS
O Livro dos Salmos apresenta, embora
seja um compêndio de poesia hebraica, um impressionante conteúdo de caráter
ético que permeia suas composições de diversas maneiras, refletindo os valores
morais e a relação do homem com Deus e com o próximo. Exploraremos
resumidamente estes conteúdos, apenas de forma introdutória, baseando-nos em algumas
referências bíblicas e acadêmicas para uma compreensão mais ampla.
Relação com Deus
Muitos Salmos expressam uma profunda
devoção e confiança em Deus, destacando a importância da fé, da obediência e da
reverência ao Criador. Essa confiança em Deus como guia e protetor reflete um
princípio ético de dependência e submissão à vontade divina.
Justiça e Retidão
Os Salmos frequentemente abordam temas
de justiça e retidão, incentivando os fiéis a viverem de acordo com os
preceitos divinos. No Salmo 15, por exemplo, o salmista descreve as qualidades
do verdadeiro adorador, destacando a importância da integridade, da honestidade
e do respeito ao próximo como aspectos fundamentais da conduta ética:
"Aquele que não difama com a sua língua, que não faz mal ao próximo, nem
lança injúria contra o seu próximo" (Salmo 15:3).
Compaixão e Solidariedade
Além disso, os Salmos também enfatizam
a importância da compaixão e solidariedade para com os necessitados e
oprimidos. No Salmo 41, o salmista fala sobre a bênção reservada para aqueles
que ajudam os pobres: "Bem-aventurado é aquele que atende ao pobre; o
Senhor o livrará no dia do mal" (Salmo 41:1). Essa atitude de generosidade
e empatia reflete um princípio ético de amor ao próximo e cuidado com os menos
favorecidos.
Arrependimento e Perdão
Outro aspecto ético dos Salmos é a
ênfase no arrependimento e no perdão. Muitos Salmos são expressões de contrição
e busca por restauração após o pecado. No Salmo 51, por exemplo, o rei Davi
clama a Deus por misericórdia e perdão após ter cometido adultério e homicídio:
"Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; apaga as minhas
transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias" (Salmo 51:1).
Esse reconhecimento da própria falibilidade e a busca por perdão demonstram um
compromisso ético com a humildade e a busca pela retidão moral.
Louvor e Gratidão
Por fim, os Salmos também ensinam que
louvor e gratidão são expressões fundamentais da vida ética. Agradecer a Deus
por Suas bênçãos e maravilhas é uma forma de reconhecer Sua bondade e fidelidade.
A atitude de reconhecimento e adoração reflete uma postura ética de humildade e
gratidão perante Deus.
Ao longo dos capítulos
desta série, exploraremos mais profundamente os conceitos de adoração e louvor,
o que são e como se desenvolvem, sempre sustentando nossos argumentos
primordialmente no texto de Salmos. Procuraremos entender o louvor como sequência
natural de uma vida de adoração, e esta consequência da devoção, entrega e
disponibilidade daquele que vive para agradar a Deus. Nos aprofundaremos no caráter
ético dessa adoração, e o papel transformador que exerce em nós.